Economia

Ataque aos Poderes: Mercado não vê risco maior de conflito e aguarda pacote fiscal, diz Meirelles

Por Portal NC

12/01/2023 às 14:16:19 - Atualizado há
Apesar da gravidade dos atos antidemocráticos, ex-ministro da Fazenda diz que instituições estão funcionando e foco econômico está nas ações que governo Lula adotará. O ex-presidente do Banco Central (Lula) e ex-ministro da Fazenda (Michel Temer), Henrique Meirelles

MIGUEL SCHINCARIOL/AFP VIA GETTY IMAGES

Ex-presidente do Banco Central (Lula) e ex-ministro da Fazenda (Michel Temer), Henrique Meirelles não se mostra pessimista sobre o impacto dos atos antidemocráticos de domingo (8) sobre a economia.

Apesar de a inédita invasão e depredação das sedes dos três Poderes por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ter chocado o Brasil e o mundo, o economista avalia que isso não abalou o funcionamento das instituições.

Foi nesse contexto que a Bolsa de Valores registrou na quarta-feira a sexta alta seguida, apesar da tensão política.

"O mercado reage com fatos, não meramente com interpretação. Evidentemente, se o mercado visse um risco maior de conflito institucional, seria um problema. Mas não é, as instituições estão funcionando normalmente", ressaltou Meirelles, em entrevista à BBC News Brasil na quarta-feira (11).

Como mais um sinal de que o governo segue funcionando, ele ressalta a decisão de Haddad de não adiar o anúncio de um pacote de medidas fiscais para reduzir o rombo nas contas públicas. O anúncio é esperado para a tarde desta quinta-feira (12).

Na avaliação de Meirelles, o foco do pacote deveria estar principalmente no corte de gastos, embora a expectativa é que as medidas a serem anunciadas por Haddad devam se concentrar no aumento das receitas, com aumento de impostos.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista, em que Meirelles também defende o teto de gastos, política implementada por ele no governo Michel Temer que tem falhado em conter despesas, assim como comenta as críticas à pressão do "mercado" para o governo enxugar o orçamento, em meio ao aumento da pobreza e da fome no país.

BBC News Brasil - Como o senhor avalia o impacto na economia da invasão das sedes dos três Poderes?

Henrique Meirelles - Não há dúvida que foi uma situação de extrema gravidade, uma invasão da sede dos três Poderes, e uma destruição do patrimônio público. É um ato inaceitável e lamentável e de grande repercussão internacional.

Bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília no último domingo

JOEDSON ALVES/ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES

Do ponto de vista dos efeitos na economia, há uma preocupação mas, por tudo o que estamos vendo de reação de mercado, o impacto está sendo dentro de um realismo: houve destruição física de propriedade pública, mas os Poderes continuam funcionando normalmente. Processo judicial, de investigação e apuração de responsabilidades está prosseguindo normalmente, vigorosamente por parte do Supremo Tribunal e das autoridades competentes.

Então, o impacto na economia é um no sentido de haver uma expectativa, uma observação mais, digamos, cuidadosa em relação ao Brasil. Mas aos poucos nós passamos a ver que, do ponto de vista de governabilidade, a atenção começa a sair daquele episódio de domingo para as ações do governo. Isto é, passa a cada vez mais ser objeto de atenção exatamente os próximos passos, as concretizações do governo Lula, principalmente na área econômica, todo o plano de ajuste fiscal e corte de despesa anunciado pelo ministro Fernando Haddad. Isso passa cada vez mais a voltar a ser o objeto maior da atenção dos mercados e, portanto, dos agentes econômicos e, em última análise, da economia.

BBC News Brasil - Então, parece ter havido uma leitura do mercado de que houve uma reação positiva dos três Poderes aos ataques e que talvez esse episódio lamentável de domingo não venha a se repetir?

Meirelles - Não sei se é exatamente só isso, uma coisa assim tão pontual. A resposta positiva à reação dos três Poderes existe, mas o ponto fundamental é que o mercado vê consequências para a área econômica. Então o mercado procura olhar: isso vai prejudicar a execução dos planos de governo? O ministro Haddad deixou ou vai deixar de anunciar seus planos? Não. Então, a atenção deixa de se voltar para aquele episódio e continuar reagindo aquele episódio. Aquele episódio ocorreu e agora as pessoas começam a se voltar normalmente para as ações do governo.

BBC News Brasil - Há o risco de essa instabilidade mais política, que talvez possa continuar, afetar o andamento das agendas econômicas? Estamos acompanhando possíveis novas mobilizações desses apoiadores do Bolsonaro.

Meirelles - Evidentemente, existe uma atenção para o tipo de ação desses grupos. Até agora, os efeitos foram chocantes e destrutivos para o patrimônio público, mas não ameaçaram o funcionamento das instituições, principalmente porque ocorreram em um domingo.

Meirelles acredita que os atos antidemocráticos de domingo não abalaram o funcionamento das instituições

JOEDSON ALVES/ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES

Há essa questão das refinarias, das estradas, etc, é uma questão objeto de atenção, mas também não está afetando a economia em si, o suprimento de petróleo, combustível, etc. Então, eu acho que esse é o ponto objetivo em que o mercado reage. O mercado reage com fatos, não necessariamente meramente com interpretação ou significado dos fatos. Evidentemente se o mercado visse um risco maior de conflito institucional seria um problema, mas não é, as instituições estão funcionando normalmente. O Judiciário está fazendo as suas investigações de uma maneira normal, vigorosa, séria. E então estamos prosseguindo aí e vendo aí como está exatamente o andamento da economia, mas de novo cada vez mais com a atenção nas próximas ações do governo.

BBC News Brasil - Economistas preocupados com equilíbrio das contas públicas têm sugerido que o governo deveria rever, por exemplo, cortes de impostos. O governo decidiu primeiro revogar a desoneração de combustíveis. Considerando o momento que o país vive, seria adequado retornar a imposto sobre combustíveis, correndo o risco de talvez categorias como caminhoneiros paralisarem estradas?

Meirelles - No início de governo, houve uma decisão de uma prorrogação dessa questão dos impostos, por esse período. Não acredito que vai haver uma grande mudança nisso. Isso tem um custo, que já está nas contas dos agentes econômicos. Por razões diversas, não só por um processo de preocupação com a inflação, mas também agora em função exatamente desta questão de atos, digamos, vamos chamar de perturbação da ordem, fatos graves como destruição do patrimônio público. Então é o momento, evidentemente, que eu acho de procurar a pacificação, cada vez maior. Eu acho que é uma coisa fundamental do governo deixar exatamente que as atenções voltem-se cada vez mais para as medidas econômicas de uma forma geral e uma pacificação do país. O que eu acho importante é o ajuste fiscal, é o corte de despesas, a reforma administrativa, a reforma tributária etc.

BBC News Brasil - Há expectativa de que o ministro Fernando Haddad anuncie essa semana ainda um pacote de medidas fiscais. Segundo o que vazou na imprensa, seria um pacote mais concentrado na reversão das desonerações, medidas como revisão dos contratos para diminuir despesas, algum corte de gastos. Como o senhor está vendo esse possível pacote?

Meirelles - Eu acho um pouco prematuro ficar fazendo grandes comentários em relação a um vazamento aqui, um vazamento ali, e aí chegar a conclusões muito fortes com isso. Vamos aguardar o que vai anunciar, em tendo anunciado isso, aí sim vamos analisar exatamente o que ele está propondo.

Agora, como eu disse, medida de controle de despesa, corte de despesas, e diminuição de algumas desonerações, de redução de benefícios que não mais se justificam, essa é a direção. Precisamos baixar as despesas e aumentar um pouco as receitas, mas principalmente baixar as despesas, em virtude exatamente dos aumentos das (outras) despesas necessárias (como o aumento do Bolsa Família, aprovado na PEC da Transição).

BBC News Brasil - Na discussão fiscal, sempre aparece a figura do mercado, que soa um pouco abstrata por parte da população. Eu queria que você explicasse para o público mais leigo: o que é o mercado exatamente e por que ele é tão poderoso, tão influente nessa discussão?

Meirelles - É uma excelente pergunta. As pessoas acham que o mercado é uma meia dúzia de pessoas lá na avenida Faria Lima (em São Paulo). Não é. O mercado são todas aquelas pessoas que estão engajadas em atividades produtivas no Brasil. O produtor, digamos, o padeiro do interior da Bahia, é mercado. Ele não tem reações imediatas que aparecem nas manchetes, tipo aqueles gestores que compram e vendem ações e isso influencia o preço da Bolsa, por exemplo. Houve uma situação qualquer onde um grande número de pessoas, vamos supor, vendeu ações na Bolsa, e isso faz com que o preço da Bolsa, o índice (que reflete o preço de um conjunto de ações), caia. Bom, "o mercado reagiu assim" (dizem os jornais). O mercado é um conjunto, no caso, de pessoas grandes, em última análise, somando-se todos os compradores e todos os vendedores, seja da Bolsa de Valores, seja do mercado de câmbio, compra e venda de moedas, e seja no mercado de juros, quanto os investidores estão demandando para comprar títulos da dívida pública, seja de curto prazo, seja de prazo maior...

Então, nós estamos falando de agentes completamente diferentes, de todo lado. Isso é que é a reação mais de curto prazo. E tem o mercado no sentido mais amplo que diz, "bom, mas (pode haver) uma reação negativa do mercado também, mas de (determinadas ações do governo) gerar um menor crescimento econômico". Não é só por causa da Bolsa, não é só por causa dos juros, não é só por causa do dólar. Então, quando eu estava mencionando o padeiro lá do interior da Bahia, que, se ele está animado, acha que a economia vai crescer, o que ele vai fazer? Ele vai contratar mais funcionário, ele vai comprar mais trigo, etc. E isso vai ativar a economia. Mas, bom, (a empresa do padeiro) é muito pequena. É muito pequeno, mas somando existem 17,2 milhões de micro, pequenas e médias empresas no Brasil. Isso tudo é mercado. Porque isso tudo (que é mercado) é o que vai reagir às medidas que podem levar ao crescimento ou não da economia.

BBC News Brasil - O senhor está explicando que o mercado é uma figura bem heterogênea, cheia de atores. Por outro lado, o mercado sempre aparece no tema fiscal com uma visão meio homogênea, de que quer o equilíbrio das contas públicas, quer corte de gastos, não quer endividamento público. Porque geralmente é colocado dessa forma, que o mercado reagiria mal a mais endividamento do governo, por exemplo?

Meirelles - Isto é uma forma da imprensa (reportar), não é do mercado. O mercado não fala, não é uma pessoa que fala "eu sou o mercado, eu reagi assim ou assado". Não existe isso. Se a Bolsa cai, se o dólar sobe, uma maneira da imprensa noticiar isso é "o mercado reagiu de uma forma negativa". Se a bolsa sobe e o dólar cai, por exemplo, se os títulos de juros caem, a imprensa diz que o mercado reagiu positivamente à situação tal ou o mercado não reagiu. É uma boa maneira, a imprensa está correta. A imprensa não tem que ficar o tempo todo explicando tudo isso que eu expliquei aqui. Então, uma forma de sintetizar a situação, o resultado das ações, das reações de todos os agentes econômicos, é isso, dizer "o mercado reagiu". É o resultado líquido. Ele (o jornalista) não vai dizer "muitas pessoas aqui compraram ações, tantas pessoas venderam ações", porque inclusive seria uma complexidade tal descritiva que seria muito difícil para as pessoas entenderem. Então coloca "o mercado reagiu assim: subiu a bolsa, caiu o dólar, caiu os juros, o mercado reagiu positivamente". Porque o mercado é o conjunto de todas as pessoas comprando e vendendo títulos.

BBC News Brasil - O campo mais à esquerda costuma criticar o mercado, talvez se referindo mais ao mercado financeiro, ao empresariado, dizendo que o mercado está preocupado só com seus ganhos financeiros e não está preocupado com a fome, com as dificuldades do povo mais pobre. Como o senhor vê esse tipo de crítica?

Meirelles - O ponto fundamental é que cada um cumpre sua função. Se é alguém responsável por gerir os recursos através de um fundo de milhões ou milhares de pessoas, sejam grandes, pequenos, médios (investidores), que colocaram sua poupança lá, ele tem que agir em benefício dessas pessoas. E, por outro lado, cabe ao governo, evidentemente, olhar a população como um todo e tomar ações de governo que melhorem a distribuição de renda, que diminuam a desigualdade econômica e que sirvam de suporte àqueles mais pobres. Então, eu acho que essa discussão é normal, que é a discussão de justificativa das diversas medidas no sentido de que cada um está cumprindo a sua função, cada um está fazendo aquilo que é a sua responsabilidade.

Evidentemente, os agentes econômicos de uma maneira geral - desde o grande gestor de fundos aqui de São Paulo ou de outras cidades, até o padeiro lá do interior - estão evidentemente preocupados com os seus resultados. O padeiro está preocupado, em última análise, se vai vender mais ou vender menos. Se vai vender mais pão, ele compra mais trigo, ele contrata mais funcionário. E isto é bom, porque se todos agirem assim, mais pessoas serão contratadas, mais empregos serão criados no país, etc. Por outro lado, o governo diz: "eu estou fazendo essa medida exatamente, apesar que ela tem um custo aqui que preocupa, mas é responsabilidade do governo, evidentemente, olhar aqui pelos mais pobres etc". Então é esse, é esse o quadro. Cada um olhando dentro da sua responsabilidade, o que é normal.

BBC News Brasil - Durante o governo Bolsonaro, houve uma agenda liberal, não necessariamente totalmente implementada, que atraiu o apoio de atores econômicos importantes, seja de empresários, na área do mercado financeiro, no agronegócio. Por outro lado, o presidente Bolsonaro sempre foi uma pessoa de discurso autoritário. Ele sempre exaltou abertamente a ditadura militar, que governou o país de 1964 a 1985. Esse apoio a um presidente que sempre teve um discurso autoritário não passa uma impressão de que talvez a elite econômica coloque questões econômicas, ganhos econômicos, acima de valores democráticos?

Meirelles - Olha, é muito importante deixar claro o seguinte: o mercado não reage politicamente, como fica aparecendo, dá apoio político. Você pode ter um empresário que dá apoio político, a um ou a outro (candidato). Então, o que o que pode existir são manifestações, também, não em relação à pessoa necessariamente, mas a determinadas políticas (defendidas pelo candidato ou autoridade). No caso, as políticas anunciadas pelo governo, como você disse muito bem, não necessariamente implementadas, mas que foram anunciadas como políticas liberais, políticas de abertura, de criação de condições favoráveis para as empresas investirem, são coisas que os agentes econômicos acham positivo. Então, apoiaram muito isso.

Agora, com o tempo começou a haver uma certa preocupação… por razões diversas, essa agenda não foi implementada, uma agenda liberal econômica, não estavam necessariamente julgando (opiniões autoritárias)… Inclusive porque eu acho que, do ponto de vista de (ser) liberal, neste caso, nós estamos falando muito objetivamente do liberalismo na área econômica... Agora, não necessariamente apoiando o estilo dele ou as tendências pessoais dele. É uma outra discussão. Muitos apoiam, muitos não apoiam.

BBC News Brasil - Mas a elite econômica acha ok, talvez, aceitar esse estilo autoritário, desde que sejam implementadas as políticas liberais? Eu estou me referindo a uma crítica que muitas pessoas fazem.

Meirelles - Eu não colocaria assim. Primeiro porque eu acho elite econômica muito vago. O que é a elite econômica? Nós vimos aqui empresários de grande porte apoiando o Lula. Então eu acho complicado todas essas generalizações, elite econômica, mercado, não sei o que. Existe um número grande de empresários que apoiavam a política econômica, não necessariamente as questões (de estilo autoritário). E segundo, independente de anúncios, de falas, houve medidas concretas autoritária do governo? E qual foi a reação a isso? Objetivamente, pode ter havido muita preocupação quanto a isso, muitas frases fortes do presidente. Mas, concretamente, não houve medidas de restrição à liberdade, que seriam, evidentemente extremamente negativas e inaceitáveis.

BBC News Brasil - O senhor tem razão, eu deveria ter falado parte da elite econômica. Eu trouxe essa questão porque é um debate que está na sociedade. Talvez ele não tenha tomado atitudes autoritárias no sentido de limitar a liberdade de ir e vir das pessoas, mas muitas pessoas consideram que o Bolsonaro foi construindo com discursos de contestação das urnas, por exemplo, de ataque o Poder Judiciário, foi construindo uma situação que culminou com o que nós vimos no domingo, inclusive com essa politização das Forças Armadas. Esse é o contexto que queria trazer quando eu fiz a pergunta.

Meirelles - Entendi. Ele tem esse discurso, mas objetivamente não conseguiu efetivar. O fato concreto é o seguinte: as Forças Armadas não intervieram. Eu sou um homem que me baseio por fatos e não por falas. As Forças Armadas não intervieram, as Forças Armadas se mantiveram no seu papel institucional, adequado, correto, de acordo com a Constituição durante todo o período. Pode-se discutir agora: poderia ter agido mais aqui, mais ali, mas eu acho que o papel das Forças Armadas é o papel claro definido pela Constituição. Não há dúvida de que ele contestou muito o resultado da eleição. Mas ele contestava antes. Ele já contestou a eleição que ele ganhou, de 2018 (quando Bolsonaro disse, sem apresentar provas, que deveria ter ganhado no primeiro turno). Então é muito mais um processo de estilo... Agora, o que está na cabeça dele eu não sei. Eu não o conheço pessoalmente para julgar o que ele de fato estava querendo com tudo isso, eu não sei.

BBC News Brasil - Uma parte da sociedade que não é inexpressiva associa Lula ao comunismo e diz que o Brasil iria virar uma Venezuela, uma Cuba. O que diria para essas pessoas?

Meirelles - Eu gostaria de esclarecer algumas coisas. Nós temos governo autoritário na Venezuela, temos governo autoritário em Cuba, mas o comunismo como tal, ele caiu com a queda do muro de Berlim muitas décadas atrás. O comunismo existiu na União Soviética, na China e países da Europa Oriental. Aquilo sim era comunismo. Eu não estou vendo nenhuma proposta de comunismo no Brasil.

Comunismo é a propriedade coletiva de todos os meios de produção. Então, em países comunistas, de fato, uma farmácia é do governo. Eu mencionei a padaria, é do governo. As fábricas todas de automóvel, de aviões ou de liquidificador, são do governo. Isso é comunismo. Isso é o que prevaleceu na União Soviética e caiu com o fracasso econômico da União Soviética e com a queda do muro de Berlim. Não acredito que exista ninguém propondo isso.

Essa questão de Venezuela ou Cuba, é que se discute apoio ou não apoio, ou crítica, a esses regimes, isso aí é outra história. Agora, da mesma maneira que se pode acusar o adversário de ser comunista, você pode acusar o adversário de ser fascista do outro lado. São acusações normais da política, mas de uso de um adjetivo mais do que qualquer outra coisa, porque o comunismo em si é algo que já caiu aí há muitas décadas e ninguém pensa em restaurar.

Por exemplo, na China se usa o nome (comunista), mas existe um regime capitalista na China, com a presença forte do Estado, mas capitalista há já muito tempo, desde a presidência do Deng Xiaoping (1978 a 1989). Em resumo, nós temos aí uma luta política normal, que é parte da democracia. A democracia pressupõe essa luta política e às vezes, a linguagem forte, etc, mas o importante é que a divergência de opinião seja preservada, democracia seja preservada e, principalmente, o critério de tomada de decisão, que é uma eleição livre e democrática. Isso é que é importante.

BBC News Brasil - O governo Lula tem prometido agilidade na reforma tributária e uma das discussões seria aumentar a taxação sobre os segmentos de maior renda, pois isso seria importante do ponto de vista distributivo. Como o senhor vê essa discussão?

Meirelles - É algo que faz parte de uma visão de política redistributiva, agora precisa tomar muito cuidado de não inibir investimentos. Porque, em última análise, a melhor política social que existe é o emprego. Então é muito importante que o Brasil tenha um aumento do nível de investimento e não uma diminuição. O total de poupança, o total de investimento do Brasil é baixo. Isso é uma das razões, inclusive, não só da nossa baixa taxa de crescimento média durante muito tempo, como também do fato que nós necessitamos de ter investimentos internacionais, que variam de US$ 60 a 90 bilhões ao ano, dependendo do ano. E isso é fundamental para o país, grande parte da nossa indústria, etc, são empresas globais.

Esses investimentos criam emprego, criam renda, são fundamentais para o Brasil. Então, nós vamos apenas tomar cuidado de não achar que o país é simples, como se fosse um país ainda de um século atrás, onde nós tenhamos aqui um grupo de pessoas que são meia dúzia de pessoas vivendo de renda. Não, nós temos que aumentar a distribuição de renda, tomar medidas fiscais que tenham conteúdo redistributivo, tudo bem, mas sem prejudicar a atividade produtiva, sem prejudicar os investimentos, porque nós hoje ficamos competindo (pelos recursos externos com outros países). Então, uma empresa vai fazer um investimento no Brasil, ou um grande fundo internacional, (ela vai se questionar) "eu vou investir no Brasil, vou investir na Coreia do Sul, vou investir no México, onde é que eu vou investir?". E nós temos que atrair esse investimento para o país. Isso gera emprego, gera renda, gera atividade, gera imposto, etc, etc. Então tudo isso é que nós temos que olhar com muita atenção, para de um lado sim, ter um sistema que é distributivo, de outro lado, não prejudicar a atividade produtiva, o aumento dos investimentos, do emprego e da renda.

BBC News Brasil - Já está dado como certo que o teto de gastos, adotado quando o senhor era ministro da Fazenda, vai ser revisto, haverá novas regras. Qual é o novo arcabouço fiscal que o Brasil precisa?

Meirelles - É muito importante que o novo arcabouço fiscal se concentre em torno daquilo que o governo controla, que são as despesas públicas. Não adianta colocar meta do que o governo não controla. Tipo receita (do governo), depende de uma série de coisas: atividade econômica, inflação. Aumentou a inflação, aumenta a receita. Aí o Banco Central consegue diminuir a inflação. Cai a receita. Bom, aí violou a meta (fiscal baseada em receita)... Já as despesas públicas o governo controla.

BBC News Brasil - Quando o teto de gastos foi adotado, houve muita crítica por parte da esquerda, mas também houve algumas críticas do campo liberal. Por exemplo, os economistas Felipe Salto, Monica de Bolle, consideravam a regra do teto muito rígida. Concretamente, a regra do teto tem sido furada ano após ano e não conseguiu de fato evitar o aumento dos gastos. O senhor reconhece que houve alguma falha de desenho nessa regra?

Meirelles - Eu quero fazer algumas colocações importantes. Em primeiro lugar, enquanto eu estava lá como ministro da Fazenda, ele não foi violado.

Número dois, e eu anunciei isso várias e repetidas vezes em entrevistas, etc... A principal finalidade do teto de gastos não é ele sozinho funcionar. Se era só pra ter um teto e ele fazer tudo, funcionar tudo, se ajustar a tudo, então ele era muito pouco flexível e não existe um teto que pudesse fazer isso e acomodar todas as demandas. A finalidade do teto é fixar um limite e, a partir daí, forçar a definição de prioridades (de gastos).

Por exemplo, uma das coisas mais importantes que eu propus na época, e depois acabou sendo aprovada em 2019, foi a reforma da Previdência. Eu não tenho a menor dúvida de que isto é um efeito extremamente positivo do teto. O teto tornou necessária a aprovação da reforma da Previdência. Foi bom para o país, na medida em que a expectativa de vida de todos nós está aumentando e isso leva à necessidade de ajustar a Previdência Social. Por exemplo, agora, é necessário fazer a reforma tributária, é necessário fazer a reforma administrativa. Tudo isso faz parte do conjunto do teto. Sem o teto, possivelmente muitas dessas reformas não estariam nem em discussão.

E o fato de que a violação do teto precisa de uma emenda constitucional (medida de aprovação mais difícil no Congresso) já é um benefício do teto. Porque antes era só gastar, aprovar uma lei ordinária aumentando o gasto. Isso levou o Brasil à ameaça de insolvência e à recessão que nós tivemos em 2015 de 2016.

Mas, com tudo isso, o teto também previu que ela tinha um tempo de duração, a partir daí que haveria exatamente uma análise de ajuste do teto (a regra previa uma revisão pelo Congresso em 2026). E é exatamente o que se está fazendo agora com essa nova fórmula fiscal e essas discussões das novas medidas.

Então, eu acho que o teto cumpriu e está cumprindo as suas funções até hoje, independentemente, inclusive, de ter havido aí alguns estouros de teto.
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